Marlene Dumas (1953, Cidade do Cabo) inscreve-se na geração de pintores que emergiram nos anos 1980 sob rótulos como "Wild Painting”. A sua insistência em modos de representação figurativa pode ser considerada um reflexo dessa proximidade geracional. Por outro lado, Marlene Dumas nunca se integrou em qualquer agrupamento de artistas – o que pode em parte atribuir-se ao facto de ter ido para a Holanda depois de terminar os seus estudos de arte na Cidade do Cabo (até 1975). Mas o mais importante é a artista nunca ter aderido à rejeição do conceptualismo característica dos artistas contemporâneos. Pelo contrário, ao longo da sua carreira tanto a sua pintura como o seu desenho revelam uma forte preocupação com questões conceptuais, como posição do autor, interpretação, universo artístico, família, género, sexualidade/erotismo e morte, todas elas objecto de reflexão numa escrita poderosa e independente, umas vezes incorporada nas obras de pintura, outras em publicações autónomas.
Nem a sua pintura e o seu desenho nem a sua escrita são unívocos e nenhuma destas áreas se destina a "explicar” as outras. Ao contrário, são evocativas, abrindo horizontes para novas e mais profundas interrogações. Conquanto muito do trabalho de Dumas resulte da sua experiência pessoal, as suas figuras e representações são habitualmente filtradas por matéria-prima fotográfica – imagens dos meios de comunicação social e fotografias pessoais que a artista reúne num vasto arquivo. Na sua obra merece destaque especial um grupo de pinturas alegóricas datadas de 1988 que estabelecem uma analogia entre a acção de olhar uma mulher e a atribuição de sentido. Esta reflexão acerca da natureza violenta e sexista da interpretação reaparece mais tarde no título de uma exposição, "Miss Interpreted”. "Procuram Sentido como se se tratasse de uma Coisa. Como se fosse uma Rapariga a quem fosse pedido que despisse as cuecas, como se quisesse fazê-lo assim que o verdadeiro intérprete surge. Como se houvesse algo a despir”. Abster-se de se auto-interpretar é uma constante preocupação de Dumas que se traduz na sua opção por pintar figuras isoladas ou mesmo fragmentos do corpo.
Em 1991/1992, a obra de Dumas sofreu uma importante alteração desencadeada pelo uso de aguadas sobre papel. O material e as práticas de execução pictórica das imagens tornaram-se ainda mais intencionalmente parte integrante do trabalho. O fluxo parcialmente imprevisível da tinta tornou-se uma analogia material da natureza evocativa das representações. A importância dos Black Drawings [Desenhos negros], uma vasta série de aguadas sobre papel, advém do facto de, pela primeira vez, Dumas ter conseguido retratar pessoas negras, o povo oprimido da sua infância e juventude sul-africanas – cada folha mostra o rosto de uma pessoa - e de ter chegado a uma fusão entre o tema e a própria pintura: representando pessoas negras, as imagens são elas mesmas negras. Deste modo, Dumas criou uma incomparável proximidade com os rostos representados. Ao mesmo tempo, a artista deixa o espectador tirar conclusões das imagens - a parede de pinturas de pequenas dimensões funciona como um arquivo, um instrumento de estudo e reflexão e não como um álbum pictórico. Pouco depois, em 1993, Dumas passou a dedicar-se, de um modo inesperadamente directo, a um outro dos seus temas predilectos: a pulsão visual alimentada pelo desejo e a excitação de observar alguém a representar para o olhar do outro, que anima obras como Porno Blues ou Porno as Collage [Porno em colagem]. Ao longo dos anos 1990, a artista realizou grupos mais ou menos extensos de aguadas que, a partir de meados dessa década, adquirem cor e maiores dimensões, muitas delas obras sedutoras mostrando mulheres em óbvias poses eróticas ou pornográficas.
Se até aí o seu trabalho se desenvolvera a partir das suas iniciais preocupações de natureza pessoal e privada – conquanto conjugadas com um constante interesse pela relação entre o privado e o público –, nesse momento questões sociais e políticas mais latas assumiram importância suprema. Dumas regressou à pintura a óleo, agora afligida pela crise na relação com o outro tipificada pelos ataques de 11 de Setembro de 2001 às Torres Gémeas. Surgem então imagens de pessoas – em geral apenas partes de corpos humanos – vendadas, subjugadas com fita adesiva de canalizador, imagens de raparigas enforcadas, rostos de mortos e, sob o título "Man Kind” [A condição humana], retratos de homens árabes. Muitas das imagens têm origem nas guerras de Gaza e do Iraque.
Marlene Dumas é há muitos anos considerada como uma das mais notáveis pintoras contemporâneas e o seu trabalho já percorreu o mundo. Em 2009, chegou ao fim a digressão mundial de uma retrospectiva de Dumas exibida em diferentes locais, entre os quais o Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles e o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. Recentemente, a artista começou a criar peças em que experimenta modos de pintar novos e surpreendentes. A exposição de Serralves pretende mostrar trabalhos recentes que permitam ao público acompanhar o questionamento de Dumas e o desenvolvimento do seu trabalho – de certo modo, assinala um novo começo depois de ter protagonizado um dos maiores sucessos da história da arte dos últimos tempos.
Comissário: Ulrich LoockProdução: Fundação de Serralves
INAUGURAÇÃO: 02 JUL (Sex), 22h00
VISITAS GUIADAS:08 JUL (Qui), 18h30, por Ulrich Loock15 JUL (Qui), 18h30, por João Fernandes20 JUL (Ter), 18h30, por Ricardo Nicolau
10 JUL (Sáb), 17h30, por Ricardo Nicolau(exclusiva para Amigos de Serralves)