"Não há um único quadro em que eu não sobreponha camadas de tinta. Cada um inclui uma longa história de actividades, mudanças, rasuras, pesquisas… Não sinto essa necessidade durante o período em que estou a trabalhar mas ela está lá… O principal – até eu chegar à próxima obra – é saber não parar! E por vezes tenho que ser capaz de eliminar coisas que são por si só belas e valiosas. Mas já aconteceram e portanto deixam de ser suficientes … No processo de trabalho o que existe é apenas o processo – actividade e resposta, resposta e actividade. Não actividade e pensamento e resposta. Isso não é possível. O pensamento tem o seu papel, mas não preciso de tomar consciência dele enquanto trabalho…”
Em Israel, os quadros e as obras sobre papel de Moshe Kupferman são extremamente apreciados. Esse apreço, porém, está quase inextricavelmente ligado a algumas das narrativas nacionais, nomeadamente quando ouvimos a história da vida difícil de Kupferman como pintor, praticamente isolado num kibutz perto da fronteira com o Líbano, ou quando o discurso foca questões relacionadas com o judaísmo de Kupferman, mais especificamente com a importância da memória da exterminação dos judeus na sua pintura. A presente exposição e o catálogo que a acompanha têm como objectivo dar um contributo para a discussão da obra de Kupferman situando-a no contexto da pintura abstracta internacional a seguir à Segunda Guerra Mundial, mais precisamente no contexto da pintura abstracta "depois de” o fim da realidade histórica da abstracção ser visto como a incarnação do modernismo. É nesse contexto que uma obra extraordinária e ainda insuficientemente conhecida irá ser descoberta.
A exposição não pretende ser exaustiva, mas sim concentrar-se nos principais exemplos de dois períodos da obra de Kupferman, mais ou menos o período correspondente aos anos oitenta (que se prolonga pela década de 1990) e o período correspondente aos anos noventa (que se prolonga pela década de 2000) – quadros e obras sobre papel. Os trabalhos da década de 1980 resultam do facto de Kupferman pintar sobrepondo camadas de tinta, cobrindo e voltando a cobrir toda a superfície do quadro. Em geral, o artista usa o verde na primeira camada. Ao longo do processo de trabalho, porém, o preto, o branco e o cinzento, num curioso tom arroxeado, acabam por predominar.A repetição é um modo de garantir a continuação ininterrupta de uma rotina de pintura diária e ao mesmo tempo é uma maneira de integrar no processo de pintar exactamente a prática mecânica da produção industrial à qual inicialmente se opunha a pintura modernista clássica (abstracta). Nesse sentido, a obra de Kupferman pertence a uma abstracção "depois” da abstracção.
Uma característica curiosa da prática Kupferman é o facto de o artista frequentemente assinar duas ou mais vezes, como que para frisar a sua responsabilidade por cada camada de tinta, como que para confirmar que cada camada tem direito a existir mas não necessariamente a ser exibida e vista. Assim, Kupferman destaca a posição central do pintor – a sua – como criador de uma obra de arte que por outro lado subverte apagando uns atrás dos outros os resultados da sua criação: trata-se de uma estranha fusão de oposições, de um fazer e desfazer, de um revelar e apagar aquilo que não pode facilmente ser considerado algo que eleve a prática da pintura a um nível "novo”. Há, antes, um pouco do "eterno regresso do mesmo” na sua obra. Em 1984 Kupferman chamou a uma das suas exposições "Pintar na Era do Colapso”.À primeira vista, pode parecer que os quadros da década de 1990 indicam uma direcção diferente: são consideravelmente mais coloridos do que nunca e exibem uma vasta gama de formas diferentes. Foram considerados uma "abertura”. Mas não há uma mudança fundamental no método de trabalho de Kupferman. Ele simplesmente já não cobre as suas pinturas de camadas, como modo de cobrir e recobrir todo o plano do quadro. Ele restringe a sobreposição de diferentes camadas de tinta a certas áreas da tela, facilitando assim a nossa "leitura” do processo. Contudo, o quadro é caracterizado pela insistência de Kupferman na negação contínua e repetida dos vários aspectos do processo de pintar, uns atrás dos outros.
E no entanto há qualquer coisa que sobressai nos quadros da década de 1990, nomeadamente na série de oito obras intitulada "A Fenda no Tempo” (Di Kriye) de 1999. A negatividade já não pertence exclusivamente ao processo de pintar, é transferida para o nível da iconografia, para o nível do significado de certos signos pictóricos que podem ser "lidos” como hieróglifos. Nesse sentido, é muito importante a pincelada que parte do canto superior esquerdo para o centro do plano do quadro, perturbando profundamente a grelha básica de orientações verticais e horizontais. Esse traço pictórico é uma referência ao costume judeu de fazer um golpe no colarinho da camisa para indicar que se está de luto por alguém que morreu. Em iídiche esse golpe designa-se "Di Kriye”. Três dos oito quadros de "A Fenda no Tempo” são frequentemente expostos no Memorial das Crianças do Museu do Holocausto, no Kibutz do Combatentes do Gueto
Por fim, a exposição compreende exemplos do grande conjunto de obras sobre papel. Kupferman gostava de desenhar e pintar sobre papel. Foi nessas obras que ele fez invenções que podiam ser parcialmente adaptadas aos quadros. No papel ele não só pintava em camadas como também na frente e no verso do suporte. O que ele fazia no verso esclarecia o que estava na frente, e vice-versa, num processo praticamente interminável.