TINO SEHGAL "A ARTE ENQUANTO ACONTECE"

de 11 FEV 2005 a 03 ABR 2005
Com formação em dança e economia política, Tino Sehgal (Londres, 1976) é um dos artistas mais singulares da actualidade, criador de uma linguagem iconoclasta que ultrapassa o horizonte de expectativas da nossa época. Sehgal concebe acções interpretadas por bailarinos, seguranças ou guias nas salas das instituições que o convidam a intervir. Uma situação inédita na cena artística contemporânea, mas semelhante ao momento em que a pintura abstracta sofreu a mutação que, durante os anos 1960, a transformou num objecto. Tal como nessa altura, o meio artístico que Sehgal escolheu para desenvolver o seu projecto requer uma abordagem sem intermediários, pelo conhecimento directo. A sua obra não é reprodutível em nenhum suporte documental – leia-se, pela fotografia ou o vídeo – que não o próprio corpo dos "actores” que lhe dão forma, não sendo, por isso, possível escrever sobre ela sem a termos visto pessoalmente. O próprio artista comentou em determinado momento que a memória constitui uma forma de documentação mais adequada para o seu trabalho do que qualquer meio tecnológico, porque produz uma impressão mais parecida com a experiência da obra. Nesta perspectiva, a escrita entendida como um relato e como meio transitório parece ser um veículo apropriado para apresentar o seu trabalho.

Outro pormenor importante da sua prática é a evolução por fases, num crescendo de subtileza e complexidade. Por estes motivos, referir-me-ei apenas às cinco peças que tive oportunidade de "ver”, seguindo uma sequência cronológica que se estende de 2000 a 2005, de acordo com o ano em que cada uma surgiu. Faltam outras, como a apresentada na Wrong Gallery de Londres – This is right (2003) – ou a mais recente, This objective of that object (Galeria Johnen + Schöttle, 2004), que proporcionariam uma visão mais completa. No entanto, o conjunto analisado é suficiente para expor o paradoxo sobre o qual assenta o ambicioso projecto artístico de Tino Sehgal: a síntese entre uma prática artística específica de um medium e a acção política. Isto é, a coordenação de dois mundos que, no panorama actual, se afiguram aparentemente inconciliáveis.

Os primeiros contactos de Tino Sehgal com o meio artístico ocorreram em 2000, altura em que apresentou em vários museus uma peça designada (untitled) quando anunciada num meio escrito, mas que mudava de nome quando o artista a intitulava durante a interpretação, de acordo com o país em que se encontrava. 20 minutes for the 20th century nos de língua inglesa, … das 20. Jahrhundert na Alemanha, e assim sucessivamente. A obra funcionava como um museu portátil de vários estilos coreográficos do século XX, desde Merce Cunningham a Xavier Le Roy, passando por Trisha Brown ou Pina Bausch, mas mantinha sempre as coordenadas temporais do cenário. Nesse mesmo ano, Sehgal apresentou a primeira peça concebida especificamente para o contexto expositivo, cujos fundamentos remontavam à dança para se aproximar das tradições da escultura e da performance. Intitulava-se Instead of allowing some thing to rise up to your face dancing bruce and dan and other things e era uma reinterpretação de várias acções que os artistas Bruce Nauman e Dan Graham tinham realizado em finais da década de 60 e princípios da de 70. Concretamente, Wall-Floor Positions e Elke Allowing the Floor to Rise Up Over Her, Face Up, apresentadas pela primeira vez em 1968 e 1973, respectivamente, e Roll, de Graham, em 1970. Todas tinham em comum os seguintes elementos: o artista como performer, o solo como base das acções e o vídeo como suporte definitivo da obra. Além disso, tanto um como o outro reconheciam a influência directa das coreografias que Simone Forti e Yvonne Rainer tinham desenvolvido a partir de uma série de reflexões sobre as relações espaciais do objecto minimalista. Huddle (Forti, 1969) ou Continuous Project –Altered Daily (Rainer, 1970) são os títulos de algumas delas. Um percurso que conduzia da fenomenologia reflexiva do cubo à efemeridade poética do corpo enquanto meio artístico, demonstrado por alguns trabalhos de Robert Morris, como Untitled (Mirrored Cubes), de 1965, ou a sua colaboração no mesmo ano com Carole Scheenemann na encenação teatral Site, na qual Morris utilizou as suas esculturas Two Columns (1961) como substitutas da figura humana.O crítico Michael Fried foi um dos primeiros autores a salientar as possíveis relações entre a nova escultura e o corpo humano, no seu célebre artigo "Art and Objecthood”, publicado em 1967. Neste, acusava Donald Judd e os seus contemporâneos de terem levado a perversão do impulso auto-referencial do modernismo até um ponto sem retorno em que se consumava a indistinção entre o espaço da obra e o do espectador. Uma reflexão recente do historiador de arte Alex Potts sobre a intuição do crítico norte-americano evidencia este processo. Segundo Potts, "[Fried] estava simultaneamente inquieto e fascinado pelo poder afectivo das obras com um forte impacto no sentido de ocupação do espaço do espectador e salientou o modo como qualquer observação sobre esse poder afectivo implicava inevitavelmente um vocabulário de intersubjectividade no qual a obra adquiria uma presença quase humana. No caso da escultura minimalista, Fried evocou um tipo muito específico de drama intersubjectivo, como se a presença com impacto fosse sempre avassaladora e de confronto”. De alguma forma, as palavras do historiador britânico indicam que Fried – para sua mágoa – teve do minimalismo um entendimento semelhante ao de coreógrafas como Rainer ou Forti. A diferença é que para estas últimas o "vocabulário de intersubjectividade” que o literalismo e a teatralidade do objecto específico propiciavam e a forma como a obra se "convertia numa presença quase-humana” pressupunham o nascimento de uma nova linguagem artística, liberta das convenções do passado, enquanto que para Fried significava o fim da arte autónoma e a fusão definitiva da arte com a vida.A ligação entre o minimalismo e a dança – embora actualmente pouco reconhecida – constituiu um elemento-chave para os artistas vinculados às práticas performativas ao tornar patente, algures entre 1960 e 1970, que, para além da aparência literal dos "objectos específicos”, existia um campo metafórico reprimido que aludia à presença do espectador. De facto, esta foi uma das orientações do trabalho desenvolvido por Bruce Nauman e Dan Graham na viragem da década. Ambos partilharam uma mesma intenção de adaptar as experiências efémeras de Rainer e Forti ao espaço expositivo através de suportes como o vídeo e a fotografia. No entanto, o passar do tempo demonstrou que esta opção era contraditória, na medida em que a projecção para uma tela ou um ecrã anulava grande parte do sentido específico da performance: a interacção entre o exercício, o espaço real e o espectador. A evolução posterior de Nauman e de Graham em direcção à arquitectura, aliada ao afastamento de outros artistas relativamente ao binómio performance-documentação, parece confirmar esta hipótese.Trinta anos depois, Tino Sehgal pretendeu apresentar uma alternativa à solução audiovisual que obras como Roll e Wall-Floor Positions encontraram para a influência da dança nas artes plásticas. Instead of allowing some thing to rise up to your face dancing bruce and dan and other things, apresentada no Verão de 2002 em Frankfurt, na quarta edição da bienal Manifesta, investiga o espaço intermédio entre a escultura e o movimento para o qual apontavam as coreografias de Rainer e de Forti. Para isso, Sehgal contratou várias bailarinas amadoras a quem atribuiu a tarefa de executar "ao vivo”, e em turnos de 90 minutos cada uma, um movimento inspirado nos vídeos de Nauman e de Graham. A acção consistia num loop que as intérpretes executavam rodando lentamente sobre si mesmas, deitadas no chão perto da esquina de uma parede no patamar de umas escadas do edifício do Städelsches Kunstinstitut. Além disso, e como referência irónica à origem audiovisual das performances em que a peça se baseava, as intérpretes formavam com as mãos uma espécie de enquadramento cinematográfico que por vezes parecia incluir o espectador que as observava, entre fascinado e pasmado.Instead of allowing some thing to rise up to your face dancing bruce and dan and other things não é uma performance nem uma escultura, nem sequer uma coreografia, mas sim um "objecto” dinâmico que realiza uma acção específica no interior de um museu e que ocupa um lugar pouco comum entre todos esses géneros sem se decidir por nenhum deles. Permanece no mesmo lugar, mas muda constantemente. É um trabalho que se configura como uma síntese da especificidade espacial e corporal do minimalismo e da dança e como reacção face à utilização audiovisual da figura humana nas performances documentais que o artista considera "ahistóricas” e que vê como um retrocesso na conquista do espaço expositivo. Ao contrário das dos seus antecessores, as acções de Sehgal não podem ser gravadas nem fotografadas, nem delas existe qualquer documentação. O seu suporte não é nem o vídeo, nem um objecto, mas uma pessoa. São peças efémeras que se reproduzem a si mesmas e que existem quando o visitante entra na sala, enquanto a interpretação tem lugar, e que desaparecem quando este se vai embora. Trata-se de intervenções que acentuam os elementos específicos da arte de acção e o sentido particular que possui a experiência de percepcionar um corpo que interage num espaço concreto perante um espectador. Tino Sehgal é um artista que não pretende libertar-se do medium, antes tenta desconstruí-lo. Actualiza a vontade contrária à reificação das neo-vanguardas ao mesmo tempo que refuta o mito da imaterialidade, à força de insistir nas condições específicas e temporais do museu como meio. As suas posições heterodoxas conduzem a extremos desconhecidos o trabalho iniciado anteriormente por artistas como Michael Asher, Marcel Broodthaers, Daniel Buren ou James Coleman.As "acções específicas” de Sehgal aprofundam a intuição principal da arte dos anos 60: a convicção de que o mundo dos objectos, o mundo exterior ao sujeito, a realidade, se transforma à medida que o indivíduo a percepciona e interage com ela. Não é o espaço que produz os acontecimentos, mas os acontecimentos que produzem o espaço, segundo a orientação fenomenológica dos movimentos de 68. Mas Sehgal pretende ir para além desse marco. Do seu ponto de vista, a realidade não se limita a corpos inertes, antes reflecte sobretudo sobre as relações intersubjectivas. Para isso, o artista criou uma obra iconoclasta, destinada a ser experimentada ao vivo, fora do ecrã, através de paradigmas, como a dança ou o canto, que desafiam a hipervisualidade contemporânea e a virtualização da experiência estimuladas pela new economy. Se Donald Judd introduziu o "objecto específico” no museu na era do capitalismo industrial, Sehgal propõe-se agora fazer o mesmo com as "acções específicas” próprias do capitalismo de serviços; substitui o intercâmbio de mercadorias pelo intercâmbio de experiências.O historiador Hal Foster afirma que este tipo de vínculo histórico pode ser entendido através do efeito da acção diferida. Uma relação de raiz psicanalítica que parte da filosofia desconstrutiva de Jacques Derrida e explica a transmissão de traumas não resolvidos do passado para o presente. É importante introduzir estes dois conceitos – desconstrução e acção diferida – em relação ao trabalho de Tino Sehgal, porque eles ajudam a matizar a relação entre duas épocas históricas com problemáticas diferentes. Por um lado, a acção diferida sublinha a adequação da obra a uma determinada época histórica, enquanto, por outro lado, a desconstrução, no sentido de mutação da atitude de auto-reflexão, elimina o erro de considerar esta iniciativa como uma mera restauração nostálgica. Outros autores, como Andrea Fraser, Vanessa Beecroft ou Santiago Sierra, bem como os seguidores das "estéticas relacionais”, seguiram uma evolução semelhante com resultados desiguais.O mais importante desta primeira experiência de Sehgal é ter conseguido, com ela, estabelecer o elemento básico sobre o qual as seguintes viriam assentar: identificar o meio artístico com uma pessoa que executa uma acção específica adaptada ao espaço do museu e à sua temporalidade. Esta é a base de operações sobre a qual o artista colocou posteriormente questões diversas a propósito das relações entre o objecto, o espaço e o espectador que, com o passar do tempo, revelaram implicações políticas de maior alcance. A série de peças This is…, iniciada em 2001 e actualmente em desenvolvimento, é um exemplo representativo desta forma de actuação. A primeira – This is good – foi apresentada na exposição colectiva "I Promise it´s Political”, comissariada por Dorothea von Hantelmann no Museu Ludwig de Colónia. Nesta ocasião, era um homem vestido como os seguranças do museu que numa das salas chamava a atenção do visitante, saltando ora num pé ora no outro, movendo os braços em círculos enquanto declamava o título da obra; "Tino Sehgal, This is good, 2001, cortesia do artista”. Tudo isto acontecia junto da obra Untitled (Mirrored Cubes), de Robert Morris, e ao lado de uma das famosas pilhas de papel de Félix González-Torres. A acção durava dez ou doze segundos e recomeçava cada vez que alguém entrava naquele espaço. Se a intenção principal de Instead of allowing… era expor o meio artístico através de uma austera encenação da dança fora do seu enquadramento habitual, a de This is good é confirmar essa operação com o objectivo de a tornar mais complexa e reflexiva ao introduzir novos elementos, como enunciados, canções ou perguntas que põem em jogo questões apenas esboçadas na obra anterior.Com efeito, o facto de a obra proposta por Sehgal se instalar temporariamente na pessoa encarregue de a cuidar e conservar matiza o seu sentido, veiculando ao mesmo tempo um gesto humorístico e subversivo que se repete constantemente na sua trajectória. O que se espera que o vigilante vigie? Na realidade, é como se a instituição interrogasse a sua própria natureza e como se o museu se convertesse no objecto de auto-referência através do segurança transformado numa metáfora. A obra é o vigilante, o vigilante é o museu e o museu é a obra. Por outro lado, o pequeno guião que reproduz as características da obra – com o título, o autor e a data – fornece toda a informação necessária para a identificar e funciona como uma espécie de assinatura que o artista delega nas convenções da instituição. A tabela, como acontece muitas vezes, confirma definitivamente que o que está a decorrer perante os nossos olhos é uma obra de arte.This is good reduz a obra de arte aos seus elementos mínimos: o museu (representado pelo guarda) e um título que a designa e identifica. Trata-se de uma estrutura tautológica que revê os dispositivos de descontinuidade clássicos da "instituição arte” e que os transforma num acto performativo. Mas, como sucede com as tautologias em arte, por detrás da aparência esconde-se muito mais. À semelhança do conhecido lema "o que vês é o que vês”, que Frank Stella aplicou ao minimalismo, a afirmação auto-evidente até ao absurdo que define a identidade artística da intervenção de Sehgal, longe de estabilizar algum sentido, tende a gerar um conjunto de perguntas relacionadas com as convenções da obra de arte no contexto museológico e a forma como a percepcionamos. This is good é, por isso, uma pergunta disfarçada de verdade auto-suficiente, que põe em jogo um mecanismo discursivo acerca de elementos como a permanência e a efemeridade da acção, o valor de troca desse acto, a possibilidade de o coleccionar ou arquivar e a noção de autoria. Convertida numa máquina de produzir sentidos, This is good estabelece os fundamentos em que assenta uma série de consequências de maior importância em torno da sociedade contemporânea, da sua economia e da sua política. Outro exemplo deste projecto é a obra This is propaganda (2002), que Sehgal apresentou na Bienal de Veneza de 2003 e que foi reproduzida em 2005, em conjunto com This is good, na exposição individual realizada no Museu de Serralves do Porto. Em Veneza, This is propaganda integrou a exposição colectiva "Utopia Station” e foi interpretada por mulheres vestidas como os vigilantes da Bienal. A sua tarefa consistia em chamar a atenção do espectador que olhava, distraído, as obras de outros artistas, cantando em tom de ópera o seguinte: "This is propaganda, you know, you know, this is propaganda, you know, you know. Tino Sehgal, This is propaganda, 2002, cortesia da Galeria Jan Mot”. Dois anos mais tarde, no Porto, e partilhando o espaço com a exposição do pintor Raoul De Keyser, uma sexagenária atraía a curiosidade do espectador enquanto realizava a mesma acção, embora neste caso alterando o nome da entidade que cedeu a obra, a colecção Haubrok, que a adquiriu no intervalo de tempo que decorreu entre as duas mostras. Nas duas ocasiões, a reacção dos espectadores foi semelhante. Olhavam-na com desconfiança e de soslaio, como quem finge normalidade perante a presença de um louco.A comparação entre as duas versões de This is propaganda revela que o factor tempo não se relaciona apenas com o movimento e o "acontecer”, antes tem também a ver com a sua historicidade. Ou seja, com uma identidade flexível que questiona a noção clássica de permanência, uma identidade iterativa que se transforma por efeito da simples repetição ao longo do tempo das obras. Uma forma de actuação coerente com a metodologia autocrítica e que explica a interligação que se produz entre cada obra nova e as anteriores. This is propaganda, por exemplo, partilha com This is good o mínimo denominador comum do seu repertório (pessoa e acção), embora mostre ao mesmo tempo variações quanto ao tipo de ocupação do espaço, ao género do intérprete e ao objectivo da mensagem. This is good era mais formalista e limitava-se a executar um exercício de autodefinição. This is propaganda, pelo contrário, tem uma vocação extrovertida e contextual muito mais marcada. A forma de ocupar o espaço de uma e outra peças assim o demonstra. Enquanto na primeira as características da acção são autocontroladas, na segunda tanto o círculo traçado pela intérprete enquanto canta como o tom elevado da sua voz tornam-na muito mais expansiva e aberta. Se This is good era um enigma que colocava uma pergunta sobre a essência da própria obra, a sua sucessora interroga o sentido político da arte. Algo consubstancial a todas as acções de Sehgal, mas que nesta ocasião se torna mais evidente.Esta sensação aumentava ao constatarmos que o tom da voz que cantava This is propaganda era suficientemente alto para que a melodia se propagasse por todo o espaço ocupado por "Utopia Station”. Era inevitável pensar que Tino Sehgal estava a fazer um comentário crítico e jocoso não apenas sobre o que acontecia naquela exposição – composta maioritariamente por obras "politicamente comprometidas”, entre as quais se destacavam as de suporte audiovisual – mas também sobre o que se entende por arte política na cena actual. A versão veneziana de This is propaganda era, pois, uma declaração de intenções que sintetizava as experiências do seu trabalho anterior e apostada em intensificar a dimensão política que se extrai da crítica do meio artístico que o artista vinha realizando desde Instead of allowing... A interacção entre a peça de Sehgal e boa parte das que a acompanhavam no Arsenal permitia distinguir com clareza uma singular abordagem "formal” do político face a uma outra, "discursiva”. Esta peça mostra que não se trata já de conceber o museu como um recipiente onde guardar colecções de objectos inertes, mas como um espaço de produção. Um lugar para a transformação de acções e não para a contemplação. Que a "eficácia” política de uma obra não depende tanto do seu conteúdo ou do que diz (pura propaganda) mas da forma como o diz e, sobretudo, do modo como se relaciona com o espectador e com o espaço envolvente. Segundo o próprio Sehgal, "a minha perspectiva é de que a dança e o canto – enquanto meios artísticos tradicionais – podem ser um paradigma de um outro modo de produção que sublinha a transformação de acções em vez da transformação de material, o envolvimento contínuo do presente com o passado na criação de outros presentes, em vez de uma orientação para a eternidade, e simultaneidade de construção e desconstrução em vez da economia do crescimento”. Por último, duas propostas recentes utilizam todos os elementos mencionados até agora e aprofundam a complexidade da aposta de Sehgal numa arte comprometida. Trata-se de This is new e de This is about, produzidas pelo Museu de Serralves do Porto em Janeiro e Fevereiro de 2005. This is new era a primeira com que o visitante deparava ao iniciar a visita e tomava corpo na recepcionista da bilheteira. Consistia em recitar o título da notícia mais importante do dia quando a recepcionista entregava o bilhete: "Sondagem dá maioria absoluta ao Partido Socialista, This is new, Tino Sehgal, 2003”, afirmava em 19 de Fevereiro de 2005.Em princípio, o material utilizado para construir This is new é altamente arriscado para qualquer artista. É sabido que praticamente todas as obras produzidas demasiado próximo da realidade, sem a distância histórica suficiente, acabam por se revelar estrondosos fracassos. No entanto, e apesar da sua extraordinária simplicidade, a proposta de Sehgal tem êxito na medida em que satisfaz os seus objectivos. Surpreender o espectador e situá-lo num momento e num lugar concreto nada mais é do que ultrapassar o limite que tradicionalmente separava a realidade e a história de um mundo supostamente interior e autónomo. O que o artista pretende com este gesto cúmplice e irónico é reter na cabeça do público os conteúdos quotidianos que normalmente se deixam um pouco de lado quando se entra num museu. This is new aplica uma interpretação pessoal do comportamento site-specific. Para Tino Sehgal, a instituição não é um lugar de evasão, mas um terreno irremediavelmente ligado a um determinado contexto histórico, político e social. This is about é a outra peça produzida pelo museu português e apresenta duas novidades muito importantes. Inclui, pela primeira vez, os guias das exposições como protagonistas da acção e altera os enunciados afirmativos por uma frase interrogativa. De novo, a escolha dos "actores” e a fórmula do texto explicam-se por outra reviravolta no processo auto-reflexivo ou desconstrutivo da série. Neste caso, o exercício está dividido em duas partes. O intérprete começa a peça enquanto caminha à frente de um grupo de visitantes pelos corredores do museu de Álvaro Siza. De repente, pára, deixa cair a cabeça para a frente – até onde as costas lho permitem – e recita com uma estranha voz gutural: "What do you think this is about? Tino Sehgal, This is about, 2003”, ao mesmo tempo que se retorce agitando os braços na direcção da audiência estupefacta. O resultado, para quê negá-lo, é insólito e varia entre a criança de O exorcista e os zombies de Thriller. Sem mais, o guia explica que se trata de uma obra de Sehgal, prossegue o seu caminho e, de seguida, produz a segunda parte em que repete o gesto mas modifica o discurso: "So now, what do you think this is about? Tino Sehgal, This is about, 2003”. É claro que o facto de a pergunta sobre um acto tão extravagante ser posta na boca dos guias que explicam os conteúdos das exposições acrescenta um sentido suplementar à obra. No entanto, o artista não se contenta em fazer dos guias ventríloquos, antes introduz uma voz de além-túmulo que, dada a indecorosa postura que os obriga a adoptar, parece emitida do fundo das costas. O debate permanece em aberto.Embora conservem o rigor formal que o caracteriza, as obras recentes de Tino Sehgal são cada vez mais extrovertidas e humorísticas e consolidam uma tendência que se tem acentuado desde que, em 2000, apresentou Instead of allowing…, o seu trabalho mais hermético e abstracto. This is about reforça essa tendência intersubjectiva presente desde o início da sua carreira e evolui para uma nova fase ao interpelar directamente o público, que se vê na disposição de se perguntar como é possível coleccionar uma obra com essas características, se é possível comprá-la ou vendê-la e, sobretudo, que significado têm estas mudanças face ao museu e à "instituição arte”.Segundo o próprio artista, as suas obras não se podem conservar nem arquivar como um objecto material devido à sua reacção deliberada ao sistema de produção capitalista. Do seu ponto de vista, muitas obras de arte objectuais afirmam a priori estruturas sobre as quais o artista tem sérias dúvidas, uma vez que reflectem e estão envolvidas na forma histórica prevalecente da economia: a transformação do material. Neste sentido, This is about, tal como as restantes propostas de Sehgal, tem como objectivo criar um dispositivo artístico auto-sustentável que sirva de alternativa à acumulação de utensílios e à transformação da natureza. É por isso que as suas obras não geram restos materiais, quer enquanto estão a ser utilizadas quer quando se guardam na memória do artista ou na dos que as experimentaram, nem mesmo quando se vendem através de um acordo verbal, sob a supervisão de um notário. Associada a isto, a elevada efemeridade das suas instalações tem outras leituras possíveis que mantêm uma relação estreita com a forma de exposição, divulgação e venda do seu trabalho.Em primeiro lugar, as acções temporárias de Tino Sehgal têm uma vocação radical de arte pública. Não no sentido popular de uma obra que se apresenta na rua, mas por se tratar de um dispositivo concebido para ser percepcionado por um sujeito colectivo, como acontece, muito especialmente, em This is about. Um aspecto curioso das suas exposições é que, quando alguma das suas obras é apresentada, a percepção do espaço físico e do público que nos acompanha torna-se especialmente intensa. Pelo contrário, noutro tipo de instalações, como em determinados vídeos, por exemplo, esse espaço costuma desaparecer através do recurso à "caixa preta” que nos introduz num mundo de ficção que nos isola do que acontece à nossa volta. Dito de uma forma mais prosaica: quando vemos um quadro ou uma fotografia, os outros espectadores incomodam-nos; perante uma peça de Sehgal ajudam-nos, são cúmplices.Em segundo lugar, esta vocação pública e temporária tem consequências consideráveis quanto à sua circulação no mercado. Embora seja certo que o contemporâneo capitalismo de acumulação flexível desenvolveu mecanismos para possuir qualquer coisa, incluindo as obras temporariamente materiais deste artista, também é verdade que por vezes se verificam curto-circuitos na eficácia do sistema. Neste sentido, apesar de qualquer particular poder comprar um trabalho de Tino Sehgal, não faz sentido possuí-lo em privado porque não foi concebido para ser instalado na casa de um indivíduo mas em museus, exposições e outros espaços de lazer colectivo. Assim, de alguma forma, o seu projecto artístico realiza um acto desestabilizador face à estrutura económica vigente no mundo da arte ao transformar os proprietários em simples patrocinadores que disponibilizam as suas obras para exibição pública. É o caso da colecção Haubrok, que o fez justamente com This is propaganda no museu K21 de Düsseldorf. Uma operação que desmonta a infra-estrutura burguesa construída sobre a autonomia e a propriedade privada e que reforça o papel do museu na cidade como fábrica de uma subjectividade emergente baseada na alteridade e no diálogo com o outro, através de formatos inovadores surgidos da instauração de novas instituições como a democracia e a classe média. Finalmente, é possível relacionar a perspectiva que Tino Sehgal tem da arte autocrítica como instrumento do activismo político com uma crise generalizada dos valores pós-modernos em todos os domínios. O sociólogo alemão Ulrich Beck propõe no seu livro A sociedade do risco global a existência de uma modernidade reflexiva que oferece alternativas epistemológicas ao "débil” pensamento pós-moderno. Segundo ele, "a modernidade radicalizada mina os fundamentos da primeira modernidade e transforma o seu quadro de referência, frequentemente de um modo que nem se desejava nem se previa […;] não se trata de pós-modernidade, mas de uma segunda modernidade”. A prática artística de Tino Sehgal, como a de outros artistas que começaram a trabalhar nos últimos dez ou quinze anos, comunga desta sensibilidade. E caracteriza-se pelo interesse comum na desconstrução das neo-vanguardas e pela reactivação crítica, longe de tentações fetichistas ou estetizantes, de ideias latentes nos movimentos das décadas de 60 e 70 que não se desenvolveram na sua época devido ao impacto inicial do ciclo conservador que conduziu ao pós-modernismo durante a década de 80. Um período que fomentou comportamentos regressivos cujo denominador comum estava associado a uma atitude referencial acrítica em consonância com a ausência de outros modelos culturais.Não se trata de arte comprometida num sentido propagandístico mas prático e porventura mais radical. O trabalho de Sehgal demonstra que a crítica específica sobre a autonomia do museu é uma forma de influenciar o sistema económico, político e social existente. Nela, a forma do político não reside na denúncia mas na criação de novos hábitos e canais de comunicação que intensificam uma fenomenologia associada à contingência. As intervenções de Tino Sehgal criam relações e constroem subjectividade. Produzem uma espacialidade baseada na diferença e na alteridade, na presença do outro. Perante as suas acções, o espectador toma consciência de que as obras de arte não têm razão para serem estáticas, antes podem estimular o vínculo criativo e transformador que existe entre os sujeitos e a realidade. Para Tino Sehgal, a arte é uma política do impossível. Aqui e agora.Texto: Pedro de Llano 
Comissariado: João FernandesProdução: Fundação de Serralves
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