Fernanda Fragateiro. Abrir janelas à pedrada

© António Jorge Silva
Abrir janelas à pedrada (2025), de Fernanda Fragateiro, integra o ciclo de encomendas para a ponte que liga o edifício principal do Museu de Serralves à Ala Álvaro Siza, inaugurada em outubro de 2023. Depois da obra sonora de Luisa Cunha, que abriu este programa, Fragateiro apresenta um muro de blocos de cimento leve que altera de forma radical a perceção do espaço.
Suspenso da parede, irregular e assimétrico, o muro surge como um corpo estranho à ordem arquitetónica do lugar, instaurando uma tensão entre peso e suspensão, densidade e permeabilidade. Construída a partir de fragmentos de edifícios demolidos no centro de Lisboa, recolhidos pela artista ao longo de vários anos, a obra é uma crítica às transformações recentes da cidade onde vive e trabalha. Neles, lêem-se os efeitos da gentrificação, da especulação imobiliária e da pressão turística — processos que alteraram a paisagem, modificaram modos de habitar e relações comunitárias. Fragateiro conta-nos a história de um espaço urbano subordinado a lógicas financeiras alheias às necessidades das pessoas que o habitam, onde cada demolição acrescenta ao palimpsesto da cidade uma nova camada de ausência, deixando marcas que revelam a fragilidade da memória coletiva e a violência silenciosa deste redesenhar radical das nossas cidades.
No longo corredor, Abrir janelas à pedrada ergue-se como obstáculo: uma barreira física que carrega também um sentido simbólico. Os blocos, sem ligação aparente, parecem prestes a ruir, mas sustentam-se mutuamente, deixando frestas por onde passam a luz e o olhar. Ao perto, cada pedra revela sinais da sua proveniência — pedaços de gesso, cimento, reboco, tijolo, pedaços lascados — testemunhos de uma derrocada em curso. A artista não procura reconstruir o que se perdeu, mas, antes, organiza fragmentos num corpo que preserva as marcas da destruição e expõe as contradições do presente, questionando a forma como a cidade administra a sua própria memória. A instalação funciona, assim, como uma espécie de dispositivo de arqueologia crítica, em que a precariedade do conjunto não se esgota na sua dimensão formal, mas propõe uma reflexão sobre tudo o que se perde com o desaparecimento de edifícios sejam eles históricos ou autoconstruídos — a matéria, mas também as histórias, as práticas coletivas e os modos de vida que a contemporaneidade, em nome do progresso, apaga.
Desde os anos 1990, Fernanda Fragateiro tem trabalhado em torno das relações entre arquitetura, ruína e memória urbana, recorrendo a materiais da construção civil e a arquivos alheios aos circuitos institucionais. Um aspeto central da sua investigação é a recuperação da obra de autoras silenciadas por narrativas dominantes. Recolher destroços dos edifícios da cidade e resgatar legados esquecidos são gestos que partem da mesma consciência: a história constrói-se tanto pelo que permanece como pelo que é apagado. Através de operações de recolha, arquivo, montagem e citação, Fragateiro articula memória e matéria, criando leituras críticas sobre aquilo que se conserva e o que é sistematicamente suprimido. No caso de Abrir janelas à pedrada, vale recordar a referência às janelas do SESC Pompeia, antiga fábrica desativada que a arquiteta Lina Bo Bardi reabilitou, tal como Fragateiro, trabalhando a ruína e o inacabado e valorizando práticas vernaculares e cultura popular, contra a hegemonia da história oficial.
A presença da obra na já icónica ponte de Álvaro Siza adquire, assim, um alcance particular. Num espaço marcado pela autoridade da arquitetura moderna, a artista introduz matéria precária e desgastada, recolhida fora dos circuitos institucionais, confrontando a ordem formal do lugar com o que a história excluiu. E também aí se inscreve a sua dimensão política, na medida em que, se muitos muros se erguem como fronteiras e exclusões, este abre-se em fendas que permitem passagens e desvios. Basta ajustar o corpo, procurar a abertura, encontrar o caminho.
O título convoca um gesto brusco, urgente — político, mas também poético. Abrir porque é necessário abrir. Com a força disponível. A pedrada rompe, mas revela; abre uma brecha por onde se pode ver e passar. Não uma janela regular, mas um rasgo: impreciso, inacabado, necessário; um gesto que insiste em abrir, apesar de tudo.
Texto: Inês Grosso