EUGÈNE GREEN
A IMAGEM DA PALAVRA
A imagem da palavra é, para Eugène Green, outra maneira de dizer cinema, como poderia ser também uma fórmula que sintetiza todo o seu percurso como artista. A exposição que agora apresentamos na Casa do Cinema Manoel de Oliveira (e que é, aliás, a primeiríssima mostra da obra de Eugène Green em contexto expositivo) abre pistas sobre a sua produção cinematográfica – sobre os processos de trabalho, os temas mais recorrentes e as posições estéticas e estilísticas que a caracterizam: sobre as suas visões do mundo –, dando a ver a singularidade do universo fílmico criado pelo cineasta.
Focando-se no modo como Green pensa a possibilidade de filmar o invisível e de revelar a manifestação daquilo a que chama "presença real” (da palavra, dos atores, dos lugares, das ideias), esta exposição não descura, igualmente, o modo como o realizador reinventa estratégias formais dos primórdios do cinematógrafo, ao mesmo tempo que lida com um imaginário que, parecendo extemporâneo, trás à luz muitas das contradições do nosso tempo. A centralidade da palavra, a teatralidade, o questionamento da representação, o neoprimitivismo não são, portanto, as únicas afinidades que o cinema tão desalinhado quanto erudito de Eugène Green mantém com a modernidade paradoxal de Manoel de Oliveira.
Nascido em 1947, em Nova Iorque – nesse território situado entre o Canadá o México, cujo nome se recusa a nomear (referindo-se-lhe sempre como "Barbárie”) –, parte para a Europa no final dos anos 1960, com o intuito de fixar-se em Inglaterra "para aprender inglês”, tendo acabado por estabelecer-se definitivamente em Paris. O francês torna-se a sua língua de adoção e França o seu país de acolhimento, tendo adquirido a nacionalidade francesa em 1976. No ano seguinte, funda o Théâtre de la Sapience, companhia com que se lança na redescoberta e reabilitação do teatro barroco francês, acabando por se afastar dos palcos em 1999, ano em que inicia a rodagem do seu primeiro filme, Toutes les Nuits (2001). Depois disso realizou, até à data, treze filmes (dos quais, oito longas metragens), assinando ainda uma vasta produção literária que permite situar Green na senda dos mais originais "cineastas teóricos” do século XX. No seu triplo exílio – geográfico, temporal, linguístico – e multiplicando-se entre a escrita, o teatro e o cinema, Eugène Green tem, assim, vindo a construir um percurso pessoal e artístico fundado no culto de diferentes formas de recuo e de distância que fazem dele um "homem do seu tempo” e lhe possibilitam, nessa exterioridade, aguçar o sentido crítico em relação ao presente.
Desde A Religiosa Portuguesa (2009), o cineasta tem dedicado um interesse particular a Portugal, que se prolonga em Como Fernando Pessoa salvou Portugal (2018) e culmina, até à data, em Lisboa Revisitada (2019), filme realizado especificamente para Serralves. Descrito pelo próprio como um exercício de montagem, este novo filme regressa, pela via documental, aos mesmos locais que víamos no primeiro filme através do filtro da ficção. O protocolo de filmagem é outro, mas outra é também a cidade que se filma. Se O Conquistador Conquistado, realizado em 2012 por Manoel de Oliveira para a Guimarães – Capital Europeia da Cultura, é um dos primeiros filmes portugueses a colocar, com humor, o dedo sobre uma ferida de que, à data, não havia senão discretos sintomas, a arqueologia cinematográfica de Green é um olhar contrastante que nos apresenta uma cidade em ruínas, onde a vida se oculta sob o manto do turismo. Mas, Lisboa Revisitada terá, também, de ser julgado como um filme que, ao questionar a gentrificação dos centros urbanos, não poderá deixar de interrogar a responsabilidade do cinema no imparável processo de turistificação das cidades. É que se, como se lê num dos intertítulos do filme, "o cinema revela a realidade escondida” enquanto "o turismo esconde a realidade visível”, pode dar-se o caso de a representação cinematográfica ser, ela própria, uma "forma de turismo”.
Entre revelações e ocultações – mas não é, isso mesmo, o que está sempre em jogo no ato de fabricar imagens? – a exposição de Eugène Green mostra-se, neste ponto, particularmente atenta a questões de toda a atualidade e que não podem ser descartadas do foro da discussão dos desígnios nacionais (e internacionais) das políticas do cinema quanto à "imagem” – e, espera-se, às imagens múltiplas e diversas – que se projetam e nos projetam.
Exposição organizada pela Fundação de Serralves – Casa do Cinema Manoel de Oliveira, comissariada por António Preto.
Imagem: Fotograma do filme Le Fils De Joseph (2016) de Eugène Green
Trailer do filme Lisboa Revisitada, de Eugène Green, em exibição permanente na exposição.
Galeria da Imagens
©